«O avô Bento, em noites de cacimbo à volta da fogueira, nos contou, fumando o seu cachimbo que ele próprio esculpiu em pau especial.
«Caminharam até à lagoa do Kinaxixi. Decisão de Nicolau. Para quê tão longe? Estava a atrasar o momento da execução? Thor não oferecia resistência à marcha, também não podia fazer nada, tão amarrado estava. Ia aos saltinhos, amparado pelos dois. Ambrósio sempre atrás. Chegaram à beira da lagoa. Nicolau não puxou pelo facão. Fez um gesto com a cabeça para Dimuka e se virou para trás. O carrasco oficial da família Van Dum fez ajoelhar Thor junto à lagoa. Pegou na catana que levava à cintura e desferiu o primeiro golpe.»
«Falo de um amor e de uma transgressão.
«João Evangelista casou no dia em que caiu o primeiro prédio. No Largo do Kinaxixi. Mais tarde procuraram encontrar uma relação de causa e efeito entre os dois notáveis acontecimentos. Mas só muito mais tarde, quando a síndroma de Luanda se tornou notícia de primeira página do New York Times e do Frankfurter Allgemeine.
A Geração da Utopia é o retrato desapiedado dos angolanos a quem ficou a dever-se a epopeia das lutas pela independência e da guerra civil que logo lhe sucedeu, das glórias e das sombras que marcaram esses longos anos de permanente conflito, e do descontentamento e da indiferença que insidiosamente se tornou o estigma de tantos desses homens e mulheres que fizeram, apesar de tudo, um país novo.
Duas estórias cruzadas são a estória de duas mulheres separadas por quatro séculos da história e unidas na afirmação das suas personalidades onde a componente cultural joga um papel preponderante, catalizador, tal se o realismo animista anunciado por um dos personagens fosse este diálogo interminável do homem e da sua natureza.
A saga do dia-a-dia de um país atrasado se transformando em nação, de angolanos pretos e brancos começando a construir aquela formosa e doce terra de Angola, ciosa de suas línguas nacionais, disposta a todos os sacrifícios para chegar ao futuro conservando suas múltiplas vozes, como um grande rio que recolhe e guarda em si a água viva dos afluentes.
Trata-se pois de estórias dum cão pastor-alemão na cidade de Luanda. Também se trata duma toninha, ser toda de espuma, algas como cabelos, que talvez só tenha vivido na minha cabeça.
Escrito em 1972, numa época em que Angola vivia sob o jugo do colonialismo.